Entrevista com Alberto Pucheu
“Desde sempre, uma das criações primordiais da literatura é a imagem” Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras da UFRJ.
Publicou ensaios e sete livros de poesia. Dentre eles,
Na cidade aberta, A fronteira desguarnecida e Escritos
da frequentação….
Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras da UFRJ. Publicou ensaios e sete livros de poesia. Dentre eles, Na cidade aberta, A fronteira desguarnecida e Escritos da frequentação. “A saliva é suor das palavras não ditas.” Essa frase foi encontrada em um muro perto da casa do escritor Alberto Pucheu que, como um bom poeta, atentou para a força das palavras esquecidas em um canto qualquer de seu bairro. Mas, as frases que ele encontrava pelo percurso urbano despertaram não só o poeta, mas um fotógrafo até então desconhecido. Pucheu começou a fotografar despretensiosamente frases poéticas encontradas na cidade, dando origem à exposição Paisagens urbanas quase sem paisagens, que ele apresentará no ArteForum. Nesta entrevista, o escritor e professor de Teoria Literária da UFRJ explica como iniciou o namoro com a fotografia e os caminhos de interseção entre a imagem e a literatura.
ANA BEATRIZ PESSANHA
Estagiária de Jornalismo do FCC/UFRJ
1. FCC – Qual é a sua relação com a fotografia e como ela surgiu?
AP – Minha relação com a fotografia é inteiramente amadora, assim como a pequena máquina digital que possuo. Essas fotos são tiradas, portanto, de maneira precária, casual, sem que nem houvesse um desejo de que fossem feitas de outra maneira. Mesmo quando uso o photoshop, é como quem não sabe usá-lo. Um pouco de luz, um pouco de contraste, essas coisas mínimas. Em nenhum momento, pensei nessa exposição como algo profissional. Gostaria de me afastar completamente de qualquer seriedade ou compromisso que me atrelasse a um conhecimento técnico, histórico, reflexivo ou mesmo artístico da fotografia. Essa série não nasce de um possível fotógrafo que haveria em mim, mas do prazer de um olhar de um poeta que caminha por cidades, perdendo-se, esquecido de si, esquecido mesmo do fato de ser poeta. Esquecido até do poeta que há em mim, o anônimo que caminha em mim se depara, subitamente, com frases também anônimas, que me causam impacto, que se fazem ser vistas, que, por serem poéticas, muito diferentes das palavras de ordem habitualmente religiosas, pseudoanarquistas ou quaisquer que sejam encontradas em todos os lugares, não se deixam mais ser esquecidas. É quando eu, esquecido de mim, tomado agora pelas frases que leio à minha frente, surpreendido pela força ali presente, tenho o desejo de fotografá-las, lembrando-me, talvez, nesse momento, de que sou poeta.
2. FCC- Como surgiu a ideia para essa exposição e quais foram os intercâmbios com sua obra literária?
AP- De fato, a surpresa diante de tais frases tem como pano de fundo o meu próprio trabalho poético, que talvez tenha me levado, ainda que de modo não planejado, a uma atenção a elas, casualmente encontradas. Em meu primeiro livro, já havia um poema feito apenas com frases de vendedores ambulantes, ouvidas diariamente no trem que eu pegava para ir ao trabalho. Em outro, apenas frases retiradas do programa do Ratinho, quando ele começou a aparecer na televisão. Ao longo dos meus livros, tal tipo de poemas passou a ser chamado de “arranjos”, ou seja, poemas nos quais não escrevo nenhuma frase minha, poemas em que apenas recolho frases alheias e faço um arranjo com elas, como se a presença do poeta pudesse ou quisesse ser levada a um grau quase zero. Tais “arranjos” são feitos, ora com fragmentos de emails, ora por frases ou pedaços de conversas ouvidas na rua fora de seu contexto, algumas vezes a partir dos bate-papos em chats; em outras, elas foram retiradas das bocas dos boxeadores… Em certo momento de meu percurso, precisei radicalizar transformando esse método em uma poética. Cheguei a ir a um extremo, fazendo um livro inteiro só de arranjos, o Já que não há cabeça nem lugar para o que passa (tudo na vida é passatempo). Agregado a isso, tem a importância maior da cidade em meus poemas: “a fronteira desguarnecida entre a pessoa e a cidade”, “a cidade aberta”, etc, etc, etc. Assim, essas fotografias são para mim frases que colho na boca dos muros da cidade, percebendo e pensando o que ela – a cidade – está dizendo para nós, o que a sua voz – voz da cidade, voz urbana – nos leva a pensar e a sentir. Para mim, o conjunto de fotografias (em torno de 25 até agora) reúne o que está por aí disperso, forma um belo arranjo urbano, deixando-nos ver uma poética política de uma comunidade anônima que nos constitui e é constituída por todos nós. É preciso dizer que, quando comecei a tirar essas fotos, o ato de fotografar as frases era completamente inconsequente. Tirava-as por pura admiração, por puro prazer, porque elas interrompiam meu percurso fazendo-me parar um pouco para percebê-las; tirava-as simplesmente por um gesto, para guardar comigo aquele prazer por mais tempo, para trazer as frases mais demoradamente comigo, para trazê-las de outras cidades, inclusive da que moro, para a minha casa e intimidade. Queria compartilhar essa alegria com alguns amigos mais íntimos para deixar ecoar mínima e ludicamente o efeito de perplexidade que muitas frases criam em nós. Mandei imprimir algumas e coloquei duas no hall do meu prédio; outras, nas paredes do meu apartamento. As pessoas iam gostando, achando-as legais, até que Renato Rezende, um grande amigo que é poeta e artista visual, as viu e gostou muito, instigando-me a expô-las e fazendo comigo um projeto para concorrer a um edital – não ganho. Comecei a perceber que as pessoas gostavam das fotos. Coloquei-as no Orkute no Facebook e os comentários eram sempre generosos e alegres, de quem se sentia tocado pelas fotos, pelas frases, com as pessoas curtindo o que passou a se tornar um projeto lúdico. Lembro-me da poeta e artista visual, Laura Erber, que trabalha, inclusive, com fotos e poemas num mesmo livro, dizendo-me que tinha gostado. Um dia, vi, indiscretamente, pelo olho mágico de minha porta, o excelente artista visual Luciano Figueiredo, que tinha ido à casa do meu querido amigo e vizinho Antonio Cicero, colocando os óculos para ver melhor as fotos no hall do meu andar, fazendo, do outro lado da porta, um comentário simpático, o que me deixou feliz (e ele nem sabe disso! Risos). Outros poetas e artistas visuais que as viam também gostavam, bem como pessoas de outras áreas, quaisquer pessoas. É claro que esses comentários simpáticos não estão preocupados em saber se aquilo é arte, se quem fotografou é um bom fotógrafo ou algo assim; claro que não. O que se gosta é da própria possibilidade de encontrar tais frases pelo caminho, de esbarrar com elas por aí. Parece-me que o gosto é pelo encontro fortuito com o poético e o pensamento anônimo urbano presente onde não são esperados. No que diz respeito a quem as flagra, fotografando tais frases, o que se gosta é também o gesto de fotografá-las, o olho que as olha e as quer guardar. Outro dia, um ex-aluno, o Jun, avisou-me, gentilmente, pelo próprio Facebook, que em Niterói tinha uma boa frase para eu fotografar, o que acabei fazendo ao atravessar a ponte numa manhã de um feriado. Essas coisas foram me instigando a dar visibilidade maior às fotografias e poder vê-las agrupadas e ampliadas. Recentemente, mostrei algumas para a Beatriz Resende (coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ), que me chamou para participar do ArteForum, o que me deu grande alegria.
3. FCC- Qual foi o motivo da escolha das cidades do Rio de Janeiro, São Luís e Lisboa para o projeto?
AP- Não houve escolha, ou então, se houve, fui eu o escolhido por elas. As primeiras fotos que fiz foi quando fui à Lisboa para realizar uma pesquisa sobre o excelente poeta português Luís Miguel Nava, por quem tenho imensa admiração. Nas horas vagas, adorava caminhar pela Alfama, pela Mouraria, por toda aquela região adorável. Ficava andando horas e horas, esquecido de mim mesmo. Até que me deparo com a frase “distorção de possibilidades” e, abaixo dela, uma seta para cada direção contrária. Adorei aquilo. Achei uma frase de grande alcance poético e mesmo filosófico para estar no meio da rua. Uma frase que provocava o pensamento, em que o dito por ela podia se desdobrar de inúmeras maneiras, sendo que resguardava a força de sua brevidade. Fotografei-a. Vi outras que também me atraíram muito. O amigo artista visual Jorge Sayão, quando viu a foto com a frase “as pessoas somos nós”, comentou, não sem humor, mas também não sem uma rememoração muito bonita: “Giotto!!! o azul de Giotto!!! A capela Brancacci foi à rua!!!” Voltando ao Rio, encontrei várias frases muito interessantes, dentre as quais, logo de cara, a maravilhosa “o sentido não tem direção.” De novo, tanto poética quanto teoricamente, é uma frase impressionante. Abri um dos meus cursos de Teoria Literária este ano com ela. Perto de casa, vi a frase “a saliva é suor das palavras não ditas”, que eu mesmo acabei usando em um dos meus poemas. Quanto a São Luís, fui dar um curso intensivo de doutorado na UEMA, tendo ficado 15 dias naquela cidade deliciosa. Fiquei hospedado no centro histórico. Tudo maravilhoso. Andava por ali diariamente. E as frases começaram a se mostrar. O meu amigo, o meu irmão, Cláudio Oliveira estava em Veneza quando Giorgio Agamben o levou para ver uma pichação de que gostava muito, que dizia “non c’e + nessun Virgilio a guidarci nell’inferno.” Cláudio fotografou a frase, mostrando-a depois para mim. Acabei fazendo um poema para ela, que gostaria de expor junto com a foto. O Renato Rezende foi uma vez à Ilha Grande e fotografou uma ótima frase, mandando-a para mim. A Lucenne Cruz, que também fotografou uma frase em Lisboa, encaminhou-a a mim. Somos agora uma legião, os admiradores dessas frases poéticas de rua, mas é bom que se diga: não de toda e qualquer frase de rua, mas justamente dessas cujo sentido, ao invés de fechado, é aberto; frases que levam seu sentido para o lugar de onde todo e qualquer sentido provém. Pelo jeito, essas fotos acabam por afetar o modo de as pessoas se relacionarem com a cidade, com o entorno de si, com a vida.
4. FCC- Na sua opinião, como a literatura se relaciona com a fotografia e com a própria imagem no momento atual?
AP- Desde sempre, uma das criações primordiais da literatura é a imagem. A literatura é craque em criar, dentre outras coisas, imagens. A fotografia também. Parece-me que um dos pontos hoje é saber quais imagens criar num momento de saturação de imagens. Como buscar uma imagem diferenciada, uma imagem-pensamento, para falar com Benjamin, que nos provoque reflexão, que estanque um pouco, mesmo por breves segundos, a avalanche das imagens que querem impor seu sentido unidirecional, autoritário. Ou então, como se apropriar do clichê, usando-o, ainda que como estereótipo, de um modo poético, frenando do lugar-comum. Eu intitulei tal exposição de Paisagens urbanas quase sem paisagens. Onde há “paisagens”, poderia ser colocada imagem, ficando “imagens urbanas quase sem imagens”. Ou seja, trata-se de paisagens mínimas, de muros e frases, paisagens de pensamento poético que querem se destacar do muro, abrindo no muro de nossos pensamentos, fendas ventiladoras, aberturas arejadoras, liberdades de, pelo sentido, abrir um possibilidade anterior a todo e qualquer sentido. Adorei o nome que Cristiane Costa, que participa da comissão de organização do evento, deu para esse tipo de fotos que estou fazendo: street poems.
5. FCC- A exposição seguirá para outros espaços depois do ArteForum?
AP- Fico torcendo para que sim. Gostaria de continuar a expor as fotografias. Por coincidência, ontem mesmo fui convidado por Alberto Saraiva, curador do evento Poesia Visual, no Oi Futuro de Ipanema, para fazer a próxima exposição. Por lá, já passaram, entre outros, os amigos, por quem tenho grande admiração como poetas e teóricos, Renato Rezende, Roberto Corrêa dos Santos e Antonio Cicero. Aceitei o convite, mas a Saraiva e eu ainda não conversamos para ver como será, para pensarmos se exporemos a série dessas fotografias ou outra coisa. Há ideias. Eu, certamente, gostaria muito que essas fotografias seguissem o seu caminho. Eu continuo seguindo o caminho delas.