Praga aquática com os dias contados
Biocida desenvolvido a partir da soja nos laboratórios do Instituto de Química acaba com a bioincrustação do mexilhão-dourado
A partir das lecitinas de soja, resíduos da indústria de produção de óleo de soja refinado, pesquisadores do Laboratório de Síntese e Análise de Produtos Estratégicos do Instituto de Química (Lasape − IQ/UFRJ) desenvolveram um biocida natural capaz de impedir o processo de bioincrustação do mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), em telas de redes empregadas em piscicultura no reservatório de Chavantes, na usina hidrelétrica de Chavantes, no estado de São Paulo. Com o apoio financeiro da Faperj e bolsas de estudos do CNPq e da Capes, o trabalho feito pelos pesquisadores para a síntese desses biocidas, com o relato da atividade biológica, foi aceito para publicação em outubro no American Chemical Society Omega.
Apesar do tamanho reduzido, inferior a 4cm, o molusco bivalve é uma praga gigantesca. O mexilhão-dourado vive em água doce e é originário da Ásia. Enquanto ainda é uma larva, a espécie é levada livremente pelas correntes nas águas de lastro embarcações ou outros objetos como madeira, plásticos e vidro, que transportam a larva na superfície ou até no interior. Segundo o site do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), foi assim que as larvas da espécie chegaram ao continente sul-americano, na água de lastro de navios cargueiros, tendo sido a Argentina o ponto original no Atlântico Sul. No Brasil, o mexilhão-dourado deve ter se alastrado nas águas do Rio Guaíba (RS) no final dos anos 1990. Ao crescer, o mexilhão-dourado fica bioincrustado em superfícies sólidas, onde forma grandes colônias, provocando prejuízos diversos.
Por não ter predadores na fauna brasileira, o mexilhão se propaga com rapidez, razão pela qual a espécie é considerada invasora. O mexilhão-dourado devasta a vegetação aquática, sobrepõe-se a espécies nativas na disputa por alimento e espaço e ainda prejudica a pesca ao reduzir o alimento dos peixes da região. Não é à toa que estudos mostram que as invasões biológicas são a segunda maior causa de extinção de espécies, só perdendo para a destruição de habitats. Mas os prejuízos afetam também as atividades econômicas, pois a proliferação de colônias prejudica a navegação, com o comprometimento de boias, trapiches, motores e de estruturas das embarcações. A grande quantidade do molusco também compromete a agricultura irrigada e os sistemas de coleta de água para geração de energia elétrica. As tubulações entupidas precisam ser limpas, o que acarreta paradas frequentes e o encarecimento da produção.
De acordo com o professor Claúdio Lopes, coordenador do Lasape, o molusco pode se bioincrustar em tanques de piscicultura e entupir os sistemas de refrigeração em usinas hidrelétricas e dutos de irrigação e de captação de águas dos rios para consumo. “Os biocidas naturais e derivados do PAF e Lyso-PAF (do inglês, phosphatidylcholine e lysophosphatidylcholine), em escala multimolar, com baixa toxicidade, que foram desenvolvidos não possuem metais pesados e halogênios nas estruturas químicas, portanto são biocidas que atendem aos parâmetros da Green Chemistry (química verde). Os biocidas sintetizados em nosso grupo de pesquisa foram associados à tinta automotiva e transformados em uma tinta anti-incrustante, capaz de impedir o processo de bioincrustação do mexilhão-dourado” revelou o professor Lopes.
A usina hidrelétrica de Chavantes, localizada no estado de São Paulo, pertence à empresa China Three Gorges, CTG do Brasil, e os testes biológicos foram realizados pelo Instituto de Pesca de São Paulo. Nos reservatórios da usina, que pertence a um complexo de unidades construídas no rio Paranapanema para fins de geração de energia elétrica, existem diversos tanques de piscicultura. “A tinta automotiva contendo os biocidas desenvolvidos por nós foi aplicada em oito redes metálicas dos tanques. Em nenhuma delas verificamos a bioincrustação do mexilhão-dourado”, assegurou o professor.
Testes na Baía de Guanabara
A mistura dos biocidas à tinta também poderá ser empregada no ambiente marinho. As cracas que se fixam às superfícies reduzem a velocidade final das embarcações, restringem a capacidade de manobra e aumentam o gasto de combustível. “O nosso biocida é uma promissora alternativa para combater a formação de cracas em embarcações civis, militares, dutos de gás e plataformas de petróleo. E não é prejudicial ao meio ambiente”, afirmou o coordenador do Lasape, lembrando que o uso de anti-incrustantes previne também a corrosão.
Desde a década de 1960, Tributilestanho (TBT) ou Trifenilestanho (TPhT), compostos denominados organoestânicos (Ots), passaram a ser adicionados em tintas anti-incrustrantes, que, aplicadas nos cascos de navios, buscavam evitar que algas, mexilhões e outros organismos se agarrassem às embarcações. Apesar da grande eficácia, os organoestânicos apresentam alto grau de toxidade contra organismos aquáticos, provocando o envenenamento do sistema biológico, principalmente de moluscos e ostras, originando mutações e condenando espécies à extinção.
Segundo o professor Lopes, nos ensaios realizados pelos pesquisadores William Romão Batista e Esther Faria Braga nos laboratórios do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM), da Marinha do Brasil, em Arraial do Cabo-RJ, os biocidas naturais sintetizados demonstraram causar uma significativa redução dos processos de crescimento de bactérias (80% de inibição relativa à conseguida pelo sulfato de cobre (CuSO4), usando concentrações de 100 microgramas/litro) e de microalgas marinhas (até 63% de inibição acima daquela conseguida pelo sulfato de cobre, usando concentrações de 300 microgramas/litro).
Placas revestidas com os biocidas foram mergulhadas nas águas da Baía de Guanabara e, após nove meses de submersão, revelaram a efetiva ação anti-incrustante da camada de tinta onde foi misturado o produto. “Os resultados mostram que a tinta pode ser uma ótima opção como biocida, que tem como matéria-prima uma substância natural (lecitinas) a partir dos resíduos da indústria do óleo de soja. Portanto, não compromete a produção de um alimento importante na dieta da população”, finalizou.
Fonte: Conexão UFRJ