Artigo: Admirável livro novo

Cristiane Henriques Costa é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, no qual desenvolve pesquisa sobre novas estratégias narrativas em mídias digitais.  É professora e coordenadora do curso de Jornalismo da ECO/UFRJ…

 

Cristiane Henriques Costa é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, no qual desenvolve pesquisa sobre novas estratégias narrativas em mídias digitais.  É professora e coordenadora do curso de Jornalismo da ECO/UFRJ. Foi editora da Nova Fronteira; das revistas Nossa História e BrHistória; do Portal Literal e do Caderno Ideias; suplemento literário do Jornal do Brasil. É autora de Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004 (São Paulo: Companhia das Letras, 2005) e de Eu compro essa mulher: romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas (Jorge Zahar Editor, 2000).

ADMIRÁVEL LIVRO NOVO

O iPad, que sai neste mês (abril/2010), nos Estados Unidos, é mais um passo de uma revolução em curso. Obras de culinária, infantis e até de literatura poderão ser enriquecidas com vídeos, animações e mecanismos interativos. Até quando o velho livro de papel aguentará a concorrência?

Quem compraria de olhos fechados um produto que ninguém experimentou, que ainda não tem certeza de como funciona e que nem sabe exatamente para que vai servir? A partir deste mês, milhares de pessoas (por ora apenas nos Estados Unidos) terão a oportunidade de ver como é realmente o iPad, o mítico e-reader da Apple, aquele que pode fazer com o livro em papel o mesmo que o iPod fez com o CD: torná-lo dispensável. Seriam esses computadores pessoais em formato de prancheta e tela sensível ao toque, chamados tablets, “assassinos tecnológicos”, capazes de transformar o livro impresso em objeto de museu, ao lado dos daguerreótipos, dos gramofones e até dos primeiros leitores digitais, como o Kindle?

Como em todas as discussões milenaristas, os debatedores podem ser divididos em duas correntes: os “apocalípticos” e os “integrados”, para usar os termos do filósofo italiano Umberto Eco, que é, aliás, uma voz importante também nessa questão. Na obra Não contem com o fim dos livros, que sai no fim do mês no Brasil, ele e o escritor francês Jean-Claude Carrière procuram tranquilizar, numa série de conversas, os que temem que a era tecnológica se transforme num apocalipse que não deixará página sobre página. Ao mesmo tempo, é um exemplo de como a discussão sobre o fim do livro é inútil, porque na maior parte do tempo é baseada em “achismos” e experiências pessoais que não são necessariamente compartilhadas pelas novas gerações, mesmo quando o debate é liderado por pensadores de renome.

 

Quem lê o livro percebe que a confiança expressa na capa não reflete o conteúdo. O que sobressai é o lamento de dois homens brilhantes que, como muitos de seus contemporâneos, se veem como dinossauros soterrados por uma revolução nas formas de escrever, ler e transmitir o conhecimento. Carrière fica surpreso, por exemplo, quando o amigo Eco revela ser um velho jogador de fliperama atordoado por uma “derrota acachapante” de 280 a 10 para o neto de 7 anos num videogame. O placar leva o autor de O nome da rosa a reconhecer que, por mais que tenha devorado bibliotecas, é incapaz de acompanhar a revolução que se anuncia. “Nossa insolente longevidade não deve nos mascarar o fato de que o mundo do conhecimento está em revolução permanente e de que não fomos capazes de captar plenamente alguma coisa senão no lapso de um tempo necessariamente limitado.”

Apesar de inflamar corações e mentes, a discussão sobre o fim do livro é apenas a ponta do iceberg de outra revolução em curso: a das novas possibilidades de narrar e ler abertas pelas tecnologias digitais (leia os principais exemplos nos quadros ao longo desta reportagem). Essas inovações convergem de tal forma que, no futuro, as experiências de ler, ouvir e ver não serão mais distintas. Uma nova semântica já começa a se instaurar a partir da internet. Os próprios conceitos de livro e literatura já não parecem mais tão claros diante das novas mídias.

A QUARTA TELA

A revolução que torna incerto o futuro do livro questiona a noção de autoria, abala as bases da indústria editorial e muda as formas de leitura já é chamada pelos especialistas de Quarta Tela – as três primeiras são a da televisão, a do computador pessoal e a do telefone celular. A quarta tela com que vamos nos acostumar a interagir diariamente será a do tablet. O iPad é a estrela desta nova geração de computadores, mas nem de longe a única. Calcula-se que ele dividirá o mercado com pelo menos 50 modelos nos próximos meses.

A Hewlett-Packard, por exemplo, promete para breve o Slate, que usará o Windows como sistema operacional. A Samsung também anunciou o seu E6, um e-reader que permite anotações a mão, e a Asus inova com um e-reader com duas telas, simulando a leitura de um livro.

Até o Brasil entrou na corrida. De Recife, a Mix Tecnologia anunciou o lançamento para junho do primeiro leitor eletrônico com software 100% nacional, a um preço que varia entre R$ 650 e R$ 1,1 mil. O investimento parece alto, mas milhares de e-books são oferecidos pelas livrarias virtuais gratuitamente, como os clássicos em domínio público. E o download de um lançamento custa em geral metade do preço de um livro em papel.

Tablets têm uma série de vantagens sobre os dispositivos que apenas exibem textos digitalizados, como os pioneiros Kindle, da livraria Amazon, e o nook, da livraria Barnes & Noble, além de sua tela colorida. “Ele abre uma nova gama de experiências que ultrapassa a da leitura do livro impresso”, afirma o brasileiro Julius Wiedemann, editor-chefe da área de design da Taschen, que já testa um programa para simular livros de arte no novo e-reader, com direito à multimídia e interatividade. “Vivemos uma mudança radical de paradigma”, acredita. Opinião parecida tem o editor da revista americana Wired, Chris Anderson. “Daqui a 10 anos vamos ver que este foi um momento significativo”, afirmou numa conferência em São Francisco, em março, quando apresentou um vídeo com a versão da revista, uma espécie de bíblia das novas tecnologias, para o iPad.

A verdade é que, até o mês passado, e-readers eram suportes eletrônicos para livros comuns, e os e-books não passavam de versões digitalizadas de textos produzidos para serem impressos. Mas, de agora em diante, o livro, assim como os jornais e revistas, pretende ser muito mais do que um texto adaptado para o novo formato. Nascidos digitais, os novos livros podem prescindir da leitura linear, integrar-se à internet, misturar palavra, vídeo, foto, som e animação, e literalmente explodir em 3D nas telas. Neste novo universo, real e virtual não são mais mundos separados. Os novos livros poderão ainda ser reescritos por seus leitores, em experiências interativas e colaborativas que colocam em questão o conceito de autoria e propriedade intelectual.

O CHEIRINHO DO LIVRO

Ainda é cedo para medir o impacto na criação narrativa dessa literatura sem papel. O livro eletrônico poderia desenvolver novas formas expressivas, assim como o livro impresso possibilitou o boom do romance, e a câmera filmadora a explosão do cinema? Boa parte das obras produzidas no novo formato ainda é experimental. No entanto, as editoras comerciais já começam a fazer suas próprias experiências. A Penguin e a Macmillan colocaram na rede vídeos mostrando como seus livros serão reinventados, ganhando recursos interativos e multimídia, espaço para comentários, mecanismos de busca e comunidades virtuais de leitores para trocar ideias.

Segundo o executivo-chefe da Penguin, John Makinson, a editora criará grande parte de seu conteúdo digital em HTML (linguagem para escrever páginas da internet) em vez do formato ePub, usado nos livros eletrônicos. “A própria definição de livro está aberta”, acredita. De fato, há dúvidas sobre como classificar as obras produzidas a partir das estratégias narrativas abertas pelas novas tecnologias. Seriam livros ou alguma forma nova, que já é chamada de transmídia, que conviverá em separado com o mercado editorial tradicional, como a televisão adquiriu uma linguagem diferente do cinema?

Apesar de toda essa excitação, não faltam leitores que não pretendem abandonar o papel por nada. Seus argumentos são pertinentes. Ler num computador não é tão confortável como ler uma obra impressa (por outro lado, uma biblioteca inteira cabe num levíssimo e-reader). É difícil ler na tela porque os olhos se cansam da luminosidade (aparentemente não os das novas gerações, habituadas às telas do computador). As baterias acabam, enquanto livros duram quase uma eternidade (em compensação, os livros impressos não podem ser baixados para o seu e-book quando se está há horas esperando na antessala do médico). Para praticamente todo argumento contra um tipo de livro há um a favor.

Resta o insubstituível “cheirinho do livro”. Para quem não abre mão dele, uma história divertida é a relatada pelo historiador americano Robert Darnton em A questão dos livros: passado, presente e futuro, que será lançada no Brasil em maio. O autor conta que uma pesquisa com estudantes constatou que 43% deles consideravam o cheiro uma das maiores qualidades dos livros. E a única que aparentemente não poderia ser suplantada pelos livros eletrônicos. Mas uma editora online, a CaféScribe, já apareceu com uma solução: oferecer um adesivo para ser colado em seus computadores com um aroma similar.

Especialista na história do livro, Darnton mostra que o livro impresso é também uma tecnologia de leitura, que já desbancou outras, no passado: os rolos de pergaminho e as obras manuscritas, mesmo que sob severos protestos de seus defensores. Nesta área, as mudanças têm sido cada vez mais rápidas. “Da descoberta da escrita até o codex (o formato atual do livro), passaram-se 4.000 anos; do codex à tipografia, 1.150 anos; da tipografia para a internet, 524 anos; da internet para os mecanismos de busca, 17 anos; deles para o Google, 7 anos; e quem sabe o que estará ali na esquina ou vindo na próxima onda?”, pergunta.

Com ou sem cheirinho, os e-readers prometem revolucionar os hábitos de leitura, assim como o codex fez com os rolos de papiro. Em vez de duas páginas lado a lado, teremos uma única, que também servirá para exibir vídeos, acessar a internet e nos comunicar com os amigos. Podemos retomar o hábito de fazer anotações nas margens, sublinhar e usar etiquetas virtuais (tags) para catalogar o que nos interessa. Em vez de comprar livros, poderemos baixá-los numa livraria virtual imediatamente, e talvez impulsivamente, porque o preço será bem menor. Será muito simples buscar palavras-chave num grande volume de textos e assim destrinchar em poucos minutos a obra de um grande pensador sobre determinado assunto ou mesmo de vários pensadores ao mesmo tempo. Vamos poupar muitas árvores de serem abatidas à toa, para a publicação de livros sem importância. Mas qual será o custo disso para o universo da leitura tal como conhecemos hoje?

O tempo dirá quem vai pagar a conta.

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