Distintas faces da palavra cantada


Melodias de canções indígenas, alegria melancólica de João Gilberto e samba são discutidos no III Encontro de Estudos da Palavra Cantada O III Encontro de Estudos da Palavra Cantada reuniu, de 23 a 26 de agosto, acadêmicos e artistas para, por meio de temas como…

Melodias de canções indígenas, alegria melancólica de João Gilberto e samba são discutidos no III Encontro de Estudos da Palavra Cantada

O III Encontro de Estudos da Palavra Cantada reuniu, de 23 a 26 de agosto, acadêmicos e artistas para, por meio de temas como perspectivas diacrônicas de abordagem e vocalidade e processos sociais, discutir as múltiplas faces da palavra cantada. A conferência de abertura ficou sob a responsabilidade do professor de etnomusicologia da University Of California (Ucla, Los Angeles/USA), Anthony Seeger, que abordou características da fala, da música e a vocalização do povo Suyá (conhecidos, entre eles próprios, como Kisêdjê) – grupo indígena do Alto Xingu, do norte do Mato Grosso, que Anthony estuda há mais de 40 anos.

Seeger convidou o público para entoar o refrão da música English is crazy, do cantor de folk estadunidense, que por acaso é seu tio, Pete Seeger (ouça aqui a música cantada por Pete Seeger: http://www.youtube.com/watch?v=_lCO4vBjneE). A letra, que é sobre contradições da língua inglesa, auxiliou na apresentação do trabalho, assim como as gravações vocais dos povos Suyá. O público acertou todas as vezes que o professor perguntou a que tipo de manifestação aquelas gravações se referiam: discursos políticos, canções, rituais míticos ou conversas informais, mesmo sem entender a língua indígena. Para Seeger, essa rápida experiência mostrou a importância de estudar a melodia e a tonalidade das vozes e não somente o conteúdo e a linguagem.

Anthony Seeger encorajou a troca de experiências entre os presentes no III Encontro de Estudos da Palavra Cantada e demonstrou uma visão otimista do futuro da etnomusicologia: “Espero que este simpósio seja muito bem aproveitado por todos ao longo dos próximos dias e que possamos fazer crescer esta área que, surpreendentemente, ainda é subdesenvolvida em países desenvolvidos.”

Interesse no Brasil foi “culpa” de Claude Lévi-Strauss

Indagado sobre o motivo que o levou a estudar os povos indígenas brasileiros, Anthony Seeger atribuiu a “culpa” ao sociólogo francês Claude Lévi-Strauss. “Ele [Lévi-Strauss] foi o culpado por muita coisa e influenciou muita gente (risos). Além disso, eu tinha um orientador na época de estudante que trabalhava com os índios Kayapós. Ele me falou certa vez dos povos Kinsêdjê, disse que provavelmente havia um material rico a ser estudado e eu tive interesse. Foi o primeiro estudo destes povos no mundo todo.”

Seeger revelou que mantém contatos regulares com os Suyá devido à facilidade atual de acesso àquela região. “Na época em que comecei a estudá-los, em meados dos anos 70, chegar lá era muito difícil. Só conseguia porque a Força Aérea Brasileira (FAB) tinha um projeto de levar pesquisadores para o Alto Xingu (MT). Estive lá em setembro do ano passado e os Kinsêdjê foram, inclusive, me buscar no aeroporto com um veículo próprio. Levo até minhas crianças para a aldeia. Já estabelecemos uma relação de confiança.”

Estilos musicais provocam reflexões sociais

As relações entre música e processos sociais foram o tema central das palestras da tarde do dia 24. Aspectos como “alegria melancólica” das canções de João Gilberto e sua ligação com o projeto utópico de Brasil moderno dos anos 1950 foram apresentados. O pesquisador Walter Garcia Júnior também abordou o estilo dos Racionais MCs e a agressividade provocadora de reflexões sociais.

Já a pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Glaura Lucas, analisou a dinâmica da música afro-brasileira nos rituais religiosos e tradições como o congado. A professora apresentou seus estudos sobre toda a performance, envolvendo as práticas musicais afrodescendentes, da palavra aos movimentos corporais.

O músico e etnomusicólogo Carlos Sandroni tratou das representações étnicas nos gêneros musicais gravados no Rio de Janeiro, de 1902 até 1940. Sandroni refletiu sobre os padrões rítmicos e poéticos constituintes da marca étnica em estilos como o lundu, o jongo, o batuque e o samba. E concluiu argumentando que hoje o samba perdeu a marca de uma etnicidade negra.

O samba construtor da história e cultura popular brasileira

Na tarde do dia 25 de agosto, o foco foi o samba. Ícones como Noel Rosa, Sinhô, Chica da Silva, assim como o coco-de-embolada e o jongo – “avô do samba” – foram objetos de estudo. O debate promoveu reflexões sobre o papel da música na sociedade brasileira e sobre seu passado histórico.

No trabalho De Sinhô para Noel – uma linha de passes de bambas, o professor, escritor e compositor André Gardel procurou estabelecer uma ligação entre os dois. Para ele, essas personalidades foram “mensageiros transculturais, cronistas sonoros da sociedade”, já que transmitiam em suas músicas o que captavam do cotidiano e das mudanças nos costumes.

Com relação às escolas de samba, a pesquisadora e professora da Escola de Comunicação da UFRJ, Liv Sovik analisou Xica da Silva – enredo, 1963, da escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro. O caso promoveu uma revolução na estética e no conceito dos desfiles por ser sobre uma mulher. Esse resgate da personagem histórica relembrou a ex-escrava que, após ser comprada pelo contratador João Fernandes de Oliveira, casou-se com ele e teve uma vida de nobre (ouça aqui o samba enredo http://www.salgueiro.com.br/S2008/CA.asp?1963).

Ao mostrar outra vertente da palavra cantada, a pesquisadora Elizabeth Travassos demonstrou a semelhança entre o coco-de-embolada e o jongo. O coco-de-embolada é um desafio entre dois emboladores – “cantores” que improvisam versos cômicos e satíricos acompanhados por pandeiros ou ganzás. É oriundo das regiões de exploração da cana de açúcar no nordeste.

Já o jongo é uma dança de conjunto, típica das grandes fazendas de café do sudeste, na qual as pessoas organizam-se em círculo. O jongueiro fica no centro da roda e puxa os cantos que são respondidos pelos participantes que improvisam movimentos corporais. Ambas as manifestações culturais estão associadas à cultura africana no Brasil e influenciaram a formação do samba carioca.

Os estudos apresentados no encontro promovido pelo Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGM/Unirio) e pelo Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (PACC) evidenciam o papel e a importância da análise da palavra cantada para compreender a cultura popular brasileira e sua origem.

Ana Beatriz Pessanha, Andrey Raychtock, Isabella Catão
Estagiários de jornalismo

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