“Formas de lembrar e narrar o passado podem legitimar ou dificultar projetos políticos no presente”

Aberta ao público desde maio, a exposição “Rastros da Verdade” apresenta arquivos produzidos ou pesquisados ao longo dos dois anos e oito meses de trabalho da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. No Brasil, a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, abriu caminho para o surgimento de mais de uma centena de órgãos semelhantes em esferas estatais ou pelas mãos da sociedade civil. Os relatórios e acervos destas comissões são documentos de um tempo em que se jogou luz sobre as violências da ditadura, na contramão de um esquecimento forçado que por décadas foi questionado apenas por familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos e movimentos sociais. Hoje, como reação aos debates levantados naquele momento, o negacionismo volta a ganhar força. É nesse contexto que a exposição busca incidir, ao colocar em evidência o esforço coletivo de luta por memória, verdade, justiça e reparação representada pelas comissões da verdade.

Aberta ao público desde maio, a exposição “Rastros da Verdade” apresenta arquivos produzidos ou pesquisados ao longo dos dois anos e oito meses de trabalho da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. No Brasil, a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, abriu caminho para o surgimento de mais de uma centena de órgãos semelhantes em esferas estatais ou pelas mãos da sociedade civil. Os relatórios e acervos destas comissões são documentos de um tempo em que se jogou luz sobre as violências da ditadura, na contramão de um esquecimento forçado que por décadas foi questionado apenas por familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos e movimentos sociais. Hoje, como reação aos debates levantados naquele momento, o negacionismo volta a ganhar força. É nesse contexto que a exposição busca incidir, ao colocar em evidência o esforço coletivo de luta por memória, verdade, justiça e reparação representada pelas comissões da verdade.

Restando três semanas para o encerramento da mostra realizada pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/UFRJ), o Fórum de Ciência e Cultura conversou com o professor José Sergio Leite Lopes sobre os riscos do silêncio, a importância da memória e a construção de novas narrativas.

Confira a entrevista completa abaixo.

FCC – Qual é o papel do Colégio Brasileiro de Altos Estudos no trabalho da Comissão Estadual da Verdade (CEV-Rio)? Há quanto tempo a exposição com os arquivos resultantes das investigações vem sendo organizada? 

José Sergio Leite Lopes (JS) – A CEV-Rio trabalhou entre 2013 e 2015. Durante os trabalhos do órgão, o CBAE manteve uma interlocução e uma parceria com a comissão. Em 2014 o CBAE promoveu o evento “Projetos Interrompidos: repercussões da ditadura sobre a universidade, os trabalhadores e os povos indígenas”; que visava a chamar atenção para outros universos em que a repressão teve forte efeito, além das graves violações de direitos humanos que incidiram fortemente sobre militantes políticos e que a Comissão Nacional da Verdade vinha levantando e vinha sendo então destacado na imprensa. Nesta ocasião foi feito o primeiro contato com os integrantes da CEV-Rio para que participassem desses encontros. Também em agosto daquele mesmo ano foi realizada a jornada “Trabalho memorial e favelas em tempos de ditadura”. Em junho de 2015 integrantes da CEV-Rio, expuseram os trabalhos da comissão numa mesa organizada pelo CBAE intitulada “Movimento pelo conhecimento e divulgação de verdades ocultas sobre a repressão aos movimentos sociais durante a ditadura”. 

Em meados de 2017, ex-integrantes da Comissão procuraram o CBAE, em função destes trabalhos conjuntos prévios e do conhecimento que tinham do arquivo digital que vinha sendo constituído no Programa de Memória dos Movimentos Sociais (Memov) do Colégio. Propuseram então a criação de um núcleo responsável por estabelecer uma parceria com o Arquivo Público do Estado a fim de dar um tratamento técnico e disponibilizar online o acervo constituído pela CEV-Rio. 

O trabalho deste núcleo começou com a preparação desde o final de 2018 do terceiro curso de integração acadêmica que o CBAE vem oferecendo a todos os programas de pós da UFRJ, previsto para 2019.1 desta vez sob a temática da memória e dos direitos humanos. E se acelerou efetivamente no início de 2019, após submetermos um projeto aos editais de eventos da CAPES e do CNPq, no qual estavam previstos a realização de um ciclo de debates  – no interior do curso mencionado -, que teve início em março deste ano e a exposição, que inauguramos no dia 17 de maio.

  1. FCC – Considerando o atual momento político do Brasil – em que muitos se colocam contra investigações envolvendo a ditadura, qual é a importância de buscar produzir novas narrativas e novos olhares para os fatos ocorridos durante o regime? Qual seria o papel político da memória e dos documentos?

JS – O objetivo da mostra é exatamente incidir sobre este contexto, levando para o público uma memória das políticas de memória, verdade, justiça e reparação que existiram no Brasil nos últimos anos. A proposta é dar publicidade aos resultados práticos das comissões da verdade, bem como incentivar pesquisadores, documentaristas, organizações da sociedade civil, estudantes do ensino básico, jornalistas e cidadãos em geral para que se apropriem deste material, a fim de dar continuidade e seguimento às pesquisas. Ao mesmo tempo o público que frequenta o curso tem à mão uma ilustração material daquilo que está sendo tratado no ciclo de palestras.

A memória tem um papel político inquestionável, na medida em que as formas de lembrar e narrar o passado podem legitimar ou dificultar projetos políticos no presente. Quando uma sociedade constrói uma memória crítica sobre um passado marcado pela violência e pelas violações de direitos, torna-se mais difícil que os cidadãos voltem a aceitar este tipo de prática. É o oposto do que ocorre no Brasil. Aqui, estabeleceu-se um grande silêncio sobre nosso passado ditatorial, de modo que nunca houve uma reflexão coletiva sobre a violência cometida por agentes estatais. Assim, no lugar de repudiar a tortura, as execuções e os desaparecimentos, temos parcela expressiva da sociedade que continua aplaudindo estas práticas. 

Nesse sentido que a produção de novas narrativas e olhares pode ajudar a quebrar esse silêncio e sensibilizar as pessoas que ainda hoje insistem em dizer que não vivemos um ditadura ou que ela foi uma “ditabranda”. Esta foi uma característica marcante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, que buscou investigar como a ditadura atingiu os moradores de favelas, a população negra, a população LGBTI, os trabalhadores urbanos e rurais, as mulheres. Parte dos documentos que subsidiou estas pesquisas estão na exposição, permitindo que os visitantes conheçam uma face da ditadura sobre a qual pouco discutimos. 

FCC – Um dos trechos da exposição – Arte, Memória e Justiça – é dedicado às produções artísticas e culturais censuradas durante a ditadura, como quadros, cartazes e composições musicais de figuras importantes da cultura brasileira. De que modo falar das artes e dos produtos culturais censurados na época contribui para o debate que envolve memória, verdade e justiça?

JS – A mostra “Arte, Memória, Verdade e Justiça” foi exibida em um evento que o CBAE organizou no dia 28 de março deste ano junto com a Universidade de Córdoba no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, no centro do Rio de Janeiro. A proposta era pensar como as artes foram alvo da censura e instrumento de resistência durante a ditadura, e também como por meio de diferentes meios os artistas promovem memória, verdade, justiça e reparação. 

Exposicao Rastros da Verdade

  1. FCC – Como a própria exposição coloca, a CEV produziu um acervo considerável e valioso de arquivos sobre o período da ditadura a serem explorados e disponibilizados ao público. Em termos acadêmicos e científicos, qual a importância de uma exposição como essa para pesquisas sobre esse momento da história do Brasil? 

JS – A CEV-Rio mobilizou dezenas, até mesmo centenas de pesquisadores durante seus trabalhos, quando lançou um edital junto à FAPERJ que financiou sete projetos de pesquisa em diversas universidades do estado. Destes projetos nasceram livros, dissertações, teses, artigos científicos. A exposição é uma forma de retomar este espírito. Ela abre pelo menos dois grandes eixos orientadores para possíveis pesquisas. Por um lado, ao tornar públicos e acessíveis os documentos da repressão que a comissão recolheu e analisou, a mostra permite que pesquisadores se debrucem sobre a produção de conhecimento sobre diversas temáticas que a comissão, pela própria natureza de seu trabalho, não teve condições de se aprofundar. Por outro lado, ao incentivar a pesquisa a partir dos documentos produzidos pela própria comissão, a exposição abre espaço para toda uma agenda de pesquisas voltada para a reflexão acerca das políticas de memória e verdade que já existiram no país, especialmente em relação às mais de cem comissões da verdade que atuaram em diferentes esferas entre 2012 e 2015. No Núcleo de Memória e Direitos Humanos constituído no CBAE em associação com o programa Memov pretendemos sistematizar parte do que pode ser analisado e também estimular redes interdisciplinares de pesquisa sobre a temática. A documentação da Comissão hoje está disponível para consulta presencial no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).

  1. FCC – Além de relatórios e registros documentais, foram descobertos outros itens (objetos etc.) nas investigações?

JS – Os acervos pesquisados pela Comissão são muito diversos, incluem fotografias, mapas, recortes de jornal e clippings feitos pelas polícias políticas e órgãos de inteligência militares. Esses acervos estão disponíveis sobretudo no Arquivo do Estado e no Arquivo Nacional. Além disso, a Comissão trabalhou muito com testemunhos de ex-presos políticos e de familiares de vítimas. Essa foi uma dimensão fundamental do trabalho da CEV-Rio, pois havia uma expectativa de que os testemunhos teriam a capacidade não somente de revelar a verdade sobre as violações, mas também de cumprir um papel pedagógico, de sensibilização sobre os horrores do período. Há, na exposição, um terminal que permite aos frequentadores acessar alguns destes testemunhos e escutá-los ali mesmo durante a visita. 

foto.curadoriaA equipe de curadoria, da esq. para a dir: Luis Capellão, Nadine Borges, Lucas Pedretti, Virna Plastino, Luciana Lombardo e Felipe Magaldi. O grupo forma o Núcleo de Memória e Direitos Humanos do CBAE/UFRJ. 

  1. FCC – De que modo o ciclo de debates “Memória, movimentos sociais e direitos humanos” e a exposição se complementam? 

JS – O ciclo tem sido uma experiência incrível por reunir pesquisadores, militantes e gestores públicos que tiveram papel de destaque na promoção de políticas de memória, verdade, justiça e reparação no Brasil e na Argentina. São dezenas de convidados, muitos de fora do Rio de Janeiro e do Brasil, que têm tido a generosidade de compartilhar conosco e com um público extremamente qualificado – composto por estudantes de graduação e pós-graduação, professores, ativistas, familiares, ex-presos políticos, documentaristas, dentre muitos outros – suas experiências e reflexões sobre a temática. A exposição confere materialidade para muitos dos debates que têm ocorrido no curso. Mas para além disso, ela tem nos permitido atingir um outro público, que é o dos estudantes do ensino fundamental e médio. Para agendar visita, basta enviar e-mail para o endereço: cbae@forum.ufrj.br.

  1. FCC – Há expectativas de desdobramento da exposição em algum outro projeto? Se sim, poderia revelar? 

JS – A nossa proposta é que a exposição possa circular por outros espaços, sem dúvida. Além disso, é importante lembrar que o Rio de Janeiro não possui nenhum museu voltado para a temática, pois o prédio onde funcionou o DOPS, que os movimentos sociais lutam para transformar em um espaço de memória, continua sob a posse da polícia, que lá também deseja fazer seu museu. Assim, um segundo desdobramento possível é receber ou promover outras mostras e exposições sobre o tema, abrindo espaço para que, mesmo na ausência de um museu voltado para a questão, nós tenhamos locais de discussão e rememoração do que foi aquele período de terror e das lutas sociais e políticas que se seguiram. 

Serviço
Data: Todas as sextas, até 12 de julho.
Horário: 13h às 17h
Local: Colégio Brasileiro de Altos Estudos – CBAE/UFRJ
Endereço: Av. Rui Barbosa, 762 – Flamengo
As visitas, que são guiadas, acontecem às sextas-feiras entre 13h e 17h. 
Agendamentos em dias e horários alternativos através do e-mail cbae@forum.ufrj.br
Entrada franca

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